domingo, 30 de outubro de 2016

Quem matou Eloá?

Violência de Gênero



Quem matou Eloá?
a mídia e a violência contra a mulher


Carta Capital


por Ingrid Matuoka — publicado 28/10/2016 15h15, última modificação 29/10/2016 08h37


Documentário de Lívia Perez analisa a espetacularização do feminicídio de Eloá Cristina



Reprodução
Uma das entrevistadas comenta: "é uma coincidência né, a polícia ter entrado na hora em que todos os programas policialescos estão com a câmera ligada para lá"





























Leia também:

"As mulheres apanham de norte a sul do Brasil"
Mulheres, entre o amor e a morte
Estupro, o crime que até a lei oculta
A tragédia do machismo no Brasil: 472 mulheres assassinadas por mês, revela Ipea
Aumenta número de homicídios de mulheres negras no Brasil



Foi um “crime de amor”, um “crime passional”, diziam os noticiários em outubro de 2008 sobre os cinco dias em que Lindemberg Alves, o “jovem trabalhador de 22 anos que gostava de jogar futebol e teve uma crise de ciúmes”, manteve Eloá Cristina Pimentel, 15 anos, em cárcere privado sob constante ameaça e violência.

As 100 horas em que ela ficou presa foram transmitidas por diversos canais da tevê aberta, em tempo real, com ar de filme de ação. O desfecho se deu no dia 17, quando a polícia invadiu o apartamento e Lindemberg matou a ex-namorada com um tiro na cabeça e outro na virilha.

Do caso nasceu o documentário “Quem matou Eloá?”, de Lívia Perez, que participou de 16 festivais brasileiros e internacionais, e ganhou cinco prêmios. A proposta da obra é discutir a naturalização da violência contra a mulher e a abordagem da mídia televisiva.

"Houve uma postura muito machista por parte da imprensa que enalteceu a personalidade do criminoso e romantizou o tipo de crime", diz a diretora em entrevista a CartaCapital. Ela também afirma que esse tipo de jornalismo é um dos pilares que mantém os altos índices de feminicídio no país.

CartaCapital: O que a motivou a fazer um documentário sobre o caso de Eloá?

Lívia Perez: Minha maior motivação foi o fato de que em nenhum momento da intensa cobertura midiática do crime se utilizou a expressão "violência contra a mulher" apesar de estarmos diante de um caso clássico deste tipo de crime e de o Brasil ser um dos países líderes em feminicídio no mundo.

CC: Como você avalia a atuação da imprensa durante o sequestro?

LP: Em primeiro lugar, o crime não deveria ter sido noticiado, pois esta é normalmente a conduta em casos de sequestro: o crime só é noticiado após a resolução, a fim de evitar qualquer tipo de interferência.

A imprensa não só noticiou como explorou intensamente o sequestro na ânsia de conseguir um furo. Praticamente todas as tevês abertas e os principais jornais do estado entrevistaram o sequestrador durante o crime. Alguns deles o fizeram ao vivo com jornalistas e repórteres se posicionando como negociadores.

Além disso, houve uma postura muito machista por parte da imprensa que enalteceu a personalidade do criminoso e romantizou o tipo de crime que era praticado naquele momento.

A atuação da imprensa foi abusiva pois o feminicídio é um problema muito sério no Brasil que é o quinto país que mais mata mulheres no mundo e apesar da imprensa explorar intensamente o crime não o discutiu de forma séria. Isso é um problema principalmente no caso das tevês abertas que se tratam de concessões públicas.


Assista ao trailer:





CC: O caso é de 2008. Desde então, notou alguma diferença na cobertura jornalística de casos similares ou o padrão se manteve?

LP: Apesar de tudo, acho que houve avanços, mas apenas porque o público, por meio da internet, tomou certa consciência do problema de concentração de mídia no Brasil e já não aceita mais alguns tipos de abordagens.

O próprio sequestro e assassinato de Eloá causou uma reflexão e até um processo contra uma das tevês. Por outro lado, ainda há muita exploração da violência contra mulheres, negros e classes sociais mais baixas nos programas policialescos que ocupam a faixa das 18h na grade de programação.

Num caso mais recente, em que uma adolescente foi vítima de estupro coletivo no Rio de Janeiro, os veículos de comunicação tentaram dar a notícia como um “suposto crime” quando na verdade os próprios criminosos já haviam postado na internet fotos e provas que os incriminavam. A audiência reagiu na internet pedindo que se reconhecesse o crime como tal e não apenas como suposto.

CC: Parte da mídia chamou o caso de "crime de amor". Como você avalia isso?

LP: Esta é a abordagem mais perversa que se pode dar para este tipo de crime. Nós, mulheres, estamos pedindo a revisão desta trágica expressão, assim como "crime de honra", desde a época do assassinato de Ângela Diniz nos anos 1970.

É muito nocivo quando tevês abertas, que são concessões públicas e, portanto, falam a milhões de brasileiros, retratam este tipo de crime muito frequente no Brasil desta forma. É como se legitimassem o assassinato de milhares de mulheres que acontece no país em nome do "ciúme", da "dor de amor" e da "honra" dos homens.

CC: Quais são algumas consequências de romantizar um feminicídio?

LP: A consequência é a legitimação deste tipo de crime na opinião pública, a criminalização das vítimas e portanto a manutenção dos altos índices de feminicídio no país.