quinta-feira, 10 de julho de 2014

7 X 1 não foi um evento esportivo


"Efeito Heisenberg" e esquizofrenia midiática derrubam a Seleção




quinta-feira, julho 10, 2014 
 
Wilson Roberto Vieira Ferreira





A mídia parece ter um discurso pronto para cada traumática desclassificação nas Copas, em um movimento semioticamente pendular: ora diz que falta “modernidade”, ora defende “tradição” ao futebol brasileiro. Mas dessa vez, nada explica a anomalia de um 7 X 1. Pelo menos os comentários da imprensa especializada foram unânimes: não foi placar de um jogo de futebol profissional. Quem lida com semiótica e sincromisticismo sabe que quando eventos tornam-se bizarros e anômalos deixam de ser meros acontecimentos para se converterem em sintomas. No caso dessa partida, sintoma de dois fatores extra-esportivos: o chamado “efeito Heisenberg” (a patologia de toda cobertura midiática extensiva) e a esquizofrenia de uma mídia sob o desgaste de politicamente ter que sabotar o evento e ao mesmo tempo faturar comercialmente.

Holanda 2 X Brasil 0, o jogo na Copa de 1974 que desclassificou o Brasil para as finais; Itália 3 X Brasil 2, jogo que tirou a Seleção da Copa de 1982; Holanda 2 X Brasil 1, jogo que eliminou a Seleção nas quartas na Copa da África do Sul em 2010.

É interessante perceber nesses momentos de aguda comoção nas crises da chamada “pátria de chuteiras” a construção de um script midiático para racionalizar as catástrofes. Um script pendular que vai do discurso da necessidade de “modernização” ao do “retorno às raízes”: de um lado a ideia de que o futebol brasileiro está ultrapassado diante da modernidade europeia (a revolução tática do “carrossel holandês” em 1974 ou a crítica ao futebol bonito da seleção em 1982, mas sem a eficiência e aplicação europeias) e do outro um futebol que ficara tão pragmático que teria esquecido “a arte” – como no caso da comemoração do “fim da Era Dunga” acusada de abandonar o “futebol bem jogado” em 2010. Ora a modernidade, ora a tradição.

Após o placar de 7 X 1, bizarro em se tratando de confrontos profissionais de seleções de futebol em uma semifinal, o discurso da grande mídia vai para o oposto do pêndulo, quatro anos depois do “fim da era Dunga”: a Seleção está ultrapassada, o futebol modernizou-se e o técnico Felipão vive do passado. Fala-se em contratar técnicos estrangeiros como o espanhol Pep Guardiola que teria supostamente criado uma “revolução tática” no Barcelona.



7 X 1: sintoma de um efeito midiático


Claro que esses dois momentos do movimento pendular do script semiótico da mídia são resultantes das intensas discussões táticas de escalações ideais sobre quem deveria entrar ou sair. Mas dessa vez o que ocorreu no Mineirão em BH foi para além de qualquer fórmula de explicações. Faltou meio campo? Neymar Jr. e Thiago Silva fizeram falta? Os jogadores alemães são mais frios e equilibrados? Nada explica a anomalia de um 7 X 1. Pelo menos os comentários da imprensa especializada foram unânimes: não foi placar de um jogo de futebol profissional.

Quem lida com as conexões entre semiótica e sincromisticismo sabe que quando eventos tornam-se bizarros e anômalos deixam de ser meros acontecimentos para se converterem em sintomas. No caso dessa partida, sintoma de algum fator extra-esportivo.


O enigma fisionômico do Felipão


Talvez aquela opinião dentro da imprensa especializada que mais se aproximou desse fator foi o jornalista José Trajano do canal ESPN. Em um debate ao vivo com Juca Kfouri e PVC logo após a goleada, Trajano criticou a imprensa esportiva brasileira (incluindo os próprios interlocutores que, perplexos, ouviam) de se limitar nos últimos dias a ficar discutindo o semblante do técnico Felipão - se estava tenso, calmo, como se os jornalistas tentassem, através da leitura da fisionomia, adivinhar a escalação do jogo decisivo.

E Felipão sabia disso: risinhos, ironias, respostas escorregadias, enigmáticas. O técnico, como todos os jogadores e comissão técnica, demonstravam estar conscientes e atentos aos seus rendimentos midiáticos – impacto, performance, repercussão etc.

O script midiático começou a ser desenhado durante a semana: de um lado a cobertura jornalística da seleção alemã destacando o planejamento, matéria especial sobre um software que estava sendo usado de forma experimental pela comissão técnica, jogadores tranquilos caminhando pelas areias da praia de Santa Cruz Cabrália (BA) e interagindo com nativos etc. Signos da modernidade e da “germanidade” – frieza, cálculo etc.




Mídia destaca software exclusivo da Alemanha: o script do "germanismo"


Ao contrário, do lado brasileiro tensão, passionalidade, comoção e homenagens emocionadas a Neymar Jr. Somado aos hinos nacionais cantados à capela, close up nos olhos marejados de lágrimas dos jogadores e micronarrativas de morte e ressurreição (Thiago Silva desenganado por médicos no passado e agora capitão do time e a redenção do goleiro Júlio César após o fracasso na Copa anterior), temos a finalização do discurso do “moderno versus antigo”, agora usado para racionalizar a derrota acachapante.


Efeito Heisenberg


Quanto mais a mídia elaborava seu trabalho semiótico, mais a Seleção correspondia a essa construção estereotipada, criando aquilo que Neal Glaber chamou de “efeito Heisenberg”, um efeito secundário produzido pelas coberturas midiáticas:se o principal efeito da onipresença midiática é transformar quase tudo que era noticiado em entretenimento, o efeito secundário é forçar quase tudo a se transformar em entretenimento para atrair a atenção da mídia – sobre isso clique aqui.

O termo “efeito Heisenberg” é uma referência ao princípio da incerteza da mecânica quântica de Werner Heisenberg (1901-1976): quando se tenta estudar uma partícula atômica, a medição da posição necessariamente perturba o momentum de uma partícula. Em outras palavras, Heisenberg queria dizer que você não pode observar uma coisa sem influenciá-la.




Granja Comary: um estúdio de TV a céu aberto


Desde o início da Copa esse discurso já estava em desenvolvimento, mas seu desdobramento foi acelerado às vésperas do jogo contra a Alemanha com o drama de Neymar Jr. Com o circo midiático 24 horas em volta da Granja Comary, a concentração acabou se tornando um gigantesco estúdio a céu aberto com personagens que respondiam prontamente às câmeras e jornalistas: jogadores cantando o hino segurando a camisa de Neymar Jr., o apresentador global Luciano Huck interrompendo treinamento para realizar um sonho de um deficiente físico e fazer jogadores chorarem entre outros episódios.


Chegou-se ao momento paradoxal que a mídia pautou acontecimentos que ela própria criou: questionou-se um suposto desequilíbrio emocional de um time que chora antes de decisões, como se tudo isso já não fosse um “efeito Heisenberg” em que os próprios jogadores entraram de cabeça – como da mesma forma falavam de uma “Copa surpreendente” depois deles próprios terem “previsto” que o evento seria um caos.


O 7 X 1: sintoma da despressurização virtual


Sem terem consciência os jogadores entraram em um espaço virtual, um discurso autista da grande mídia que mostrava o que ela mesma criava e, por outro lado, a seleção que prontamente confirmava o personagem previsto no script midiático. Nesse mundo virtual de pregnância entre o script e a realidade, os jogadores certamente sentiam a excitação de ver cada gesto repercutido pela confirmação midiática do personagem do script.


Portanto, o bizarro placar pode ser encarado como o sintoma de uma espécie de “disbarismo”, o mal da descompressão quando um indivíduo é exposto a uma rápida redução da pressão do ar que rodeia o corpo como na despressurização de cabines de aviões ou ascensão rápida à superfície de mergulhadores: confusão cerebral e paralisia.


A tragédia estava anunciada pelo último ato do script: ao enfrentarem o personagem semioticamente oposto (a Alemanha da “germanidade” e “modernidade”), ocorreu nesse momento a violenta “despressurização” e disbarismo – a cena virtual repentinamente se desfez quando os jogadores foram arrancados do conforto de um sistema virtualmente autista. Caíram na real em um só golpe. Black out, vanish point!


A esquizofrenia midiática




Máfia dos ingressos da Copa: vai sobrar para a Seleção?


Mas esse sintoma expressou também outro traço da grande mídia: a esquizofrenia. Como dispositivo de comunicação que se converteu em oposição política diante da ineficácia dos partidos de oposição ao Governo, conviveu doentiamente com o duplo papel: faturar publicitariamente com a Copa do Mundo e, ao mesmo tempo, detoná-la e no seu íntimo aguardar por uma “bala de prata” que inviabilizasse ou pelo menos prejudicasse o evento.

Mas nada aconteceu e não só a Copa do Mundo começou como foi um êxito esportivo e organizacional. Restou a situação ainda mais esquizofrênica de secar” a seleção e, ao mesmo tempo, enaltecê-la como garoto-propaganda das verbas publicitárias.


O estúdio de vidro da SporTV e a academia de ginástica da Granja Comary: Efeito Heisenberg



Essa condição patológica passou a produzir tanto desgaste na opinião pública e queda de audiência que a TV Globo (ponta de lança da grande mídia) teve que reformular a estética de programas e telejornais com muita autorreferência e metalinguagem. Acusada de manipulação, passou obsessivamente a perseguir a estética da transparência como forma de simular que a Globo nada tinha a esconder. Primeiro, a grotesca simulação de reunião de pauta no Fantástico, como se o telespectador pudesse discutir o viés das matérias pautadas – sobre isso clique aqui.

O estúdio de vidro da SporTV no Rio de Janeiro para a cobertura da Copa foi o último esforço em criar signos de transparência – acreditar que a transparência literal contaminaria a transparência informativa. Sincronicamente, em um exemplar “efeito Heisenberg”, a Granja Comary também se tornava transparente como, por exemplo, a academia de ginástica envidraçada para que todos pudessem ver os jogadores nas bicicletas ergométricas. O que só estimulou os jogadores a performarem o script construído laboriosamente pela mídia.

O auge dessa esquizofrenia se verificou a cerca de 48 horas antes do jogo fatídico. O programa Fantástico da TV Globo faz matéria especial (reapresentada em um resumo no Jornal Nacional no dia seguinte) sobre a máfia dos ingressos e a FIFA e, de passagem dentro do espírito do “testando hipóteses”, falam de suposto envolvimento de “alguém de dentro da concentração da seleção” e que “poderia ser um jogador”. Isso dá o que pensar, principalmente de uma emissora que turbinou os protestos Anti-Copa.

Enquanto isso na ESPN o jornalista PVC sustentou em um debate (com direito a imagens de arquivo enquanto falava) que a seleção “sentia um peso sobre os ombros” com o nacionalismo das “manifestações nas ruas” para explicar o “descontrole emocional” dos jogadores.

Por isso a anomalia do 7 X 1 não foi um evento esportivo. A bizarra goleada só pode ser compreendida como um evento onde as mídias não se limitam apenas a transmití-lo, mas também criam uma relação simbiótica onde discurso e realidade, signo e referência se misturando até chegar a surreal imagem proposta pelo escritor Jorge Luís Borges: um mapa que acaba se confundindo com o próprio território ou, no caso da Seleção, os personagens que se confundem com o próprio script ficcional.

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