segunda-feira, 16 de setembro de 2013

uma revolução burguesa e conservadora


“Garibaldi foi o primeiro marqueteiro da história moderna”, diz Gianni Carta


SUL 21



Jornalista e cientista político Gianni Carta afirma que Garibaldi se desencantou com a Revolução Farroupilha | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Samir Oliveira

O jornalista e cientista político Gianni Carta esteve em Porto Alegre na semana passada para o lançamento de seu novo livro: Garibaldi na América do Sul, o Mito do Gaúcho. Durante oito anos o escritor pesquisou sobre a vida do guerreiro italiano que lutou na Revolução Farroupilha, na Guerra Grande, no Uruguai, e no processo de unificação italiana.

Na obra, Gianni Carta afirma que a imagem de Giuseppe Garibaldi enquanto gaúcho foi premeditadamente construída. O jornalista ressalta que, no Rio Grande do Sul, o italiano não lutava vestido de gaúcho. Mas, quando retornou à Itália, adotou o figurino típico da região do Prata – que, naquela época, não era bem visto pelas elites.

Nesta entrevista ao Sul21, Gianni Carta afirma que Garibaldi foi o primeiro marqueteiro da história moderna. O jornalista comenta, ainda, sobre o envolvimento do italiano com o escritor francês Alexandre Dumas, que foi o maior propagandista de Garibaldi e o responsável por eternizá-lo como um guerreiro gaúcho.

Gianni Carta, 49 anos, nasceu no Brasil, em novembro de 1963. Aos 16 anos, foi estudar nos Estados Unidos, onde se formou em Ciências Políticas e em Jornalismo pela Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Cursou pós-graduação na Universidade de Boston e no Centro de Estudos Diplomáticos Estratégicos de Paris. Atualmente, mora em Paris, na França, onde é correspondente da revista Carta Capital e também atua como jornalista freelancer.
“Os livros que tratavam dos feitos de Garibaldi utilizavam fontes secundárias. Eu fui atrás dos artigos escritos na época”

Sul21 – Como surgiu a ideia de escrever o livro?

Gianni Carta – Minha família é italiana. Em casa, meus avós nem falavam português. Meu pai me botava no colo e cantava as cantigas garibaldinas. Então tem o lado mais pessoal. Garibaldi nasceu em Nizza, em 1807, que estava sob o domínio de Napoleão. Eu me interessava por essa figura. Mas o projeto do livro começou de fato quando eu estava em um salão de livros em Paris, em 2002, e vi um livro sobre Garibaldi de um historiador francês muito bom. Na capa desse livro tinha um gaúcho. Então eu pensei: “como ninguém nunca explicou porque ele se vestia sempre de gaúcho?”. Eu li esse livro, era muito bem escrito e bastante crítico. Garibaldi, foi, de fato, um herói. Mas esse livro mostrava ele como homem, um lado que desconhecemos.


“Se cria uma rede com diversos jornais e divulgação internacional dos feitos de Garibaldi” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Como foi a decisão de mostrar a atuação dele na América do Sul?

Gianni – Garibaldi chegou no Rio de Janeiro no começo de 1836. Ele havia sido condenado à morte em 1834, em Gênova, por ter sido o agitador de um motim em um navio real. Então ele fugiu para o Rio – até existia o mito de que todas as pessoas em busca de refúgio iam para o Rio de Janeiro. Mas a cidade era conservadora, Garibaldi não deu muito certo lá. Então ele lutou na Revolução Farroupilha de 1838 a 1840. Em 1841 ele vai lutar na Guerra Grande, no Uruguai, onde o Giovanni Battista Cuneo, outro italiano, o estava esperando. Depois ele volta para a Itália e se torna o general da unificação do país, concretizada em 1861 e em 1870, com a tomada de Roma. Nos três lugares em que Garibaldi lutou, foi um herói. Mas os livros que tratavam desses feitos utilizavam fontes secundárias. Eu fui atrás dos artigos sobre Garibaldi escritos na época.

Sul21 – A que documentos tu tiveste acesso?

Gianni – Minhas fontes primárias são todas de escritos daquela época. Consegui todos os artigos do jornal oficial da Revolução Farroupilha, O Povo. O Luigi Rossetti, diretor do jornal, escreveu artigos sobre as batalhas do Garibaldi em Camaquã e São José do Norte, com descrições e perfis. O Cuneo faz a mesma coisa, só que na Guerra Grande, de 1841 a 1848, e ainda publica a primeira grande biografia do Garibaldi, publicada em 1850. Ocorre que em 1843 o Cuneo consegue contato com Giuseppe Mazzini, que era o líder republicano da unificação italiana.

Sul21 – Quais eram os objetivos desse movimento?

Gianni - Queriam uma Itália republicana, unificada, sem monarcas – italianos ou estrangeiros. Então Mazzini criou o movimento Jovem Itália durante o exílio em Londres. De lá, ele publicava um jornal em italiano e distribuía para seus seguidores no mundo inteiro. A intenção era criar jornais em todo o mundo. O Povo, de certa forma, foi uma criação desse processo. E o Cuneo criou, em Montevidéu, o Jovem Uruguai, que virou a Jovem Sul-América. O objetivo era recrutar voluntários para lutar contra os opressores. No caso da Guerra Grande, o opressor era o ditador argentino Juan Manuel de Rosas, que queria anexar o Uruguai. No caso do Rio Grande do Sul, os inimigos eram os imperiais brasileiros. Então se cria uma rede com diversos jornais e divulgação internacional dos feitos de Garibaldi. O Rossetti morre no final de 1840, mas o Cuneo, em 1843, começa a enviar artigos sobre Garibaldi para o Mazzini, que fala inglês, francês e italiano. Então o Mazzini começa a divulgar o Garibaldi em três línguas, fazendo ele ser noticiado em todos os lugares. Essa é a primeira parte do mito. Existem distorções. Batalhas perdidas foram celebradas como vencidas. Garibaldi teve derrotas em São José do Norte, Taquari… Mas foi um grande herói. Com meu livro, eu não quis desmistificar e desconstruir a história. Só quis mostrar os bastidores. Mostrar que Garibaldi foi o primeiro marqueteiro da história moderna.

“Garibaldi era um romântico, um herói por excelência”


“A formação dele ocorreu na América do Sul, onde exerceu a tática de guerrilha” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Esses jornalistas gravitavam em torno de Garibaldi por uma iniciativa dele de se promover? Ou era uma iniciativa dos jornalistas do movimento sem que Garibaldi tivesse ingerência sobre o processo?

Gianni – Garibaldi era um romântico, um herói por excelência. Era um sujeito aloirado, de olhos claros, tinha carisma. Não era como o Thiago Lacerda na Casa das Sete Mulheres, que faz mais o tipo napolitano. A ficção acaba transformando a figura, mas não é algo grave, porque o Brasil não conhecia Garibaldi – vocês aqui do Sul, sim. A população foi conhecê-lo a partir deste seriado, que vem do livro da Letícia Wierzchowski. Entrevistei ela e o Thiago Lacerda para o meu livro, assim como a Maria Adelaide Amaral. Então Cuneo e Rossetti logo perceberam que Garibaldi era um líder. Quando Cuneo escreve para o Mazzini, ele diz: “encontramos um líder para a causa da unificação”.

Sul21 – Garibaldi e Mazzini nunca tinham tido contato até então?

Gianni – Não. Existe um mito de que eles haviam se encontrado em Marselha, mas isso não aconteceu, apesar de vários historiadores brasileiros insistirem que houve. O fato é que o movimento Jovem Itália precisava de um herói. É aí que surge o Garibaldi neste contexto. Sem Mazzini, não existiria Garibaldi, que era um marinheiro apolítico, a partir do momento em que foi iniciado no movimento. Garibaldi tinha o porte de herói e era, de fato, um lutador. A formação dele ocorreu na América do Sul, onde ele exerceu a tática de guerrilha, os ataques surpresa, e ganhou várias batalhas desta forma.

Sul21 – A outra parte do teu livro é sobre o “gauchismo” de Garibaldi.

Gianni – Isso é uma invenção. É a parte mais divertida do livro. Em junho de 1848, Garibaldi desembarca na Itália vestido de gaúcho da cabeça aos pés. O Mazzini fica perplexo. A imagem do gaúcho não era boa naquela época. Gaúcho era o mestiço, o bastardo, o marginalizado pela sociedade. Mas Garibaldi adorava esse gaúcho malo e matreiro. Todo mundo ficou perplexo quando ele retorna à Itália vestido de gaúcho, porque ele era um general – havia sido promovido a esse posto no Uruguai, em 1846, após a batalha de Santo Antônio. Então surgem litografias do Garibaldi com essas vestimentas em jornais italianos, franceses, britânicos e americanos.

Sul21 – Por que esse interesse dele em construir um personagem gaúcho?

Gianni – Ele queria insuflar medo no inimigo. Ele dizia: “sou general, mas me visto de gaúcho, sou anárquico e uso táticas de guerrilha”. Garibaldi queria demonstrar que vinha de outra escola. Era algo meio anárquico mesmo. Isso de fato funcionou. Os inimigos ficaram assustados com a sua figura. Todos na Europa conheciam o cowboy, mas não conheciam o gaúcho.
“Anita era uma amazona, montava em pelo. Era a gaúcha de Santa Catarina. Garibaldi era muito menos gaúcho do que ela”

Sul21 – Garibaldi participou da fundação da República Romana.

Gianni – Mazzini era o líder do triunvirato que fundou a República Romana no primeiro semestre de 1849, tendo Garibaldi como grande defensor. O Papa Pio IX foge para o Sul da Itália, e convoca o exército francês. Eles tentam (proteger a República Romana), mas perderam essa batalha. Então Garibaldi foge e Anita Garibaldi – o amor da sua vida – morre, em agosto de 1849, nessa fuga, provavelmente de malária. Essa foi a grande tragédia da vida dele. Anita foi o amor de Garibaldi, isso está claríssimo. Ele admirava ela. Havia um lado muito feminista, porque ela lutava com ele. Anita era realmente uma amazona, montava em pelo. Era a gaúcha de Santa Catarina. Garibaldi era muito menos gaúcho do que ela.


Vida de Garibaldi mudou após a morte de Anita, afirma escritor | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Como a vida dele se modifica após a morte de Anita?

Gianni – A vida dele mudou, ele ficou muito mais amargo. Os outros casamentos que teve nunca foram tão felizes. Anita deu quatro filhos a Garibaldi. Um nasceu em Mostardas, no Rio Grande do Sul. Os outros três nasceram no Uruguai. Quando Garibaldi perde a República Romana e Anita morre, ele fala ao Mazzini que quer uma Itália unificada, mas não republicana, porque não há força para derrotar os bourbons no Sul. Então ele se alia ao exército Sardo-Piemontês, que o tinha condenado em 1834. Esse exército, monarquista, não se empolga muito, mas presta auxílio a uma expedição. Parem de Gênova em direção a Palermo com mil homens mal armados, voluntários de todos os tipos, muito mal preparados. Adotando a tática de guerrilha, venceram a batalha.

Sul21 – No teu livro, tu também falas sobre o envolvimento de Alexandre Dumas com Garibaldi.

Gianni – Dumas era o maior novelista da época. Junto com Júlio Verne, era o escritor mais vendido do mundo. Ele já tinha publicado “Os Três Mosqueteiros” em 1844 e adorava o Garibaldi, porque ele soltava negros e era abolicionista. Dumas era um mestiço, filho de um general negro. Era um mestiço, como os gaúchos. E era um errante como os gaúchos: ganhava muito dinheiro e perdia tudo com mulheres e bebidas. Então Dumas se identificava com o gaúcho e gostava do fato de o Garibaldi gostar dos gaúchos – ao contrário de italianos e franceses intelectuais, que achavam que o gaúcho era um vadio. Alexandre Dumas promoveu Garibaldi como um gaúcho, um libertador de negros, abolicionista e anticlerical. Ele é o maior promotor do Garibaldi, até pelo fato de escrever em francês – que era o inglês da época – e de ser o novelista mais importante daquele momento. Tudo que Dumas escrevia era imediatamente traduzido.


Alexandre Dumas foi responsável por globalizar a figura de um Garibaldi gaúcho | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Como ele organizou sua obra sobre Garibaldi?

Gianni – Ele escreveu três livros sobre Garibaldi, que foram traduzidos imediatamente para o castelhano e para o português. Depois, foram traduzidos para uma centena de línguas. Garibaldi é o primeiro herói moderno que vira uma celebridade. E gaúcho – por escolha dele. Nesta “Expedição dos Mil”, Dumas ficou ao lado de Garibaldi durante 60 dias, fundou um jornal em Nápoles para promovê-lo e fez compilações em italiano e em francês. É aí que nasce a imagem do Garibaldi gaúcho. Ele embarcou nesta expedição vestido de gaúcho e posou para jornalistas e fotógrafos – a mesma coisa que ele já fazia na América do Sul com pintores. O engraçado dessa história é que aqui no Rio Grande do Sul e no Prata Garibaldi nunca lutou vestido de gaúcho. Bartolomeu Mitre, que foi presidente da Argentina, historiador e general, litou com Garibaldi e disse que nunca o viu vestido de gaúcho. Ele só usava o poncho quando ia conversar com autoridades nas embaixadas, porque tinha vergonha das roupas puídas e utilizava o poncho para cobri-las.

Sul21 – Garibaldi tinha noção que era um herói, uma pessoa famosa por seus feitos?

Gianni – No começo ele não tinha muita noção. Mas quando retorna para a Itália, se torna, de fato, um marqueteiro. Ele começa a se cercar de jornalistas e fotógrafos a partir de 1840. Ele estava muito consciente disso.
“Não aboliram a escravidão e Garibaldi ficou desiludido. Percebeu que, de fato, era uma revolução burguesa e conservadora”

Sul21 – Tu falaste que Garibaldi era um abolicionista. Ele se decepcionou politicamente com a Revolução Farroupilha em função do conservadorismo de seus líderes escravocratas?

Gianni – Garibaldi acreditou na Revolução Farroupilha. Ele achava que era uma revolução republicana – o que, de fato, não era. Era uma revolução conservadora. Bento Gonçalves era um aristocrata, já havia lutado com os imperiais, era um fazendeiro rico com muitas terras e escravos. Não era nada abolicionista. Embora Garibaldi admirasse muito o Bento Gonçalves e vice-versa. Como lutador, Bento Gonçalves era um homem elegante, um grande guerreiro. Mas, aos poucos, Garibaldi e Rossetti foram percebendo que não podiam falar sobre abolicionismo no jornal O Povo. Não podiam falar sobre o movimento anti-clerical, porque todos os líderes da revolução eram católicos não praticantes. Garibaldi começou a perceber que a revolução havia começado por causa dos impostos sobre o charque. É claro que havia republicanos na Revolução Farroupilha. Ninguém vai dizer que não teve gente que não morreu por ideais republicanos. Mas não a cúpula. O Almeida, que foi ministro do Bento Gonçalves, vendeu escravos para comprar a tipografia de O Povo. Isso chocou muito o Rossetti. O jornal tinha anúncios sobre escravos foragidos. E, 1840, antes de morrer em Viamão, Rossetti teve uma conversa com Garibaldi. Ele disse que a revolução não daria em nada, que ele deveria ir embora, pois tudo iria terminar em um acordo de paz. Deu no que deu: não aboliram a escravidão e Garibaldi ficou desiludido. Com a morte do Rossetti, ele fica sem mentor e percebe que, de fato, era uma revolução burguesa e conservadora.


Garibaldi tinha muito mais importância na Guerra Grande do que na Revolução Farroupilha | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – E como foi o envolvimento político dele com a guerra no Uruguai?

Gianni – Os uruguaios e argentinos foram muito mais receptivos. Eles criaram o movimento Jovem Argentina, com ideais republicanos muito fortes. Garibaldi se deu muito melhor no Uruguai, tinha muito mais responsabilidades. E era uma guerra contra um tirano, o Rosas. O papel do Garibaldi é muito mais significativo na Guerra Grande do que na Revolução Farroupilha, até pelas funções que ele adquiriu. Era comandante da marinha, criou a legião italiana em 1843. A partir de 1845, as marinhas francesa e britânica, que tinham interesses comerciais na região, decidiram apoiar Garibaldi e começaram a protegê-lo. Então jornalistas franceses e ingleses escreviam artigos sobre ele, que, até então, era visto como pirata e mercenário pelos governos brasileiro e argentino.

Sul21 – É possível fazer alguma comparação entre o que foi o Garibaldi no século XIX e o que representou Che Guevara no século XX?

Gianni – Sim. Segundo alguns historiadores, Che Guevara usou muito as táticas de guerrilha do Garibaldi. Dizem que Che Guevara se inspirou muito em Garibaldi. Che era uma figura fantástica, se inspirou muito em Garibaldi, tanto nas táticas de guerrilha como na vestimenta e nas táticas de propaganda. Che Guevara é o Garibaldi do século XX, mas essa frase o Max Galo, historiador francês, já havia dito.

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