segunda-feira, 23 de setembro de 2013

depois de 10 anos... continua atual


A Bienal do Mercosul. A bienal de um não-lugar




Diário Gauche


“Sem dúvida, o nosso tempo prefere a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade, a aparência ao ser.” (Ludwig Feuerbach in Prefácio da segunda edição de A essência do cristianismo).

Reflitamos um pouco sobre a Bienal do Mercosul, que ora se realiza em Porto Alegre. É um evento muito importante, por isso precisamos avaliar a sua expressão e significado; sem entrar em méritos formalistas ou conteudistas, e muito menos fazer juízo de gosto.

Que mensagens nos traz? Millôr dizia que quem traz mensagens são os Correios, pois bem, que mensagens simbólicas (e essas os Correios jamais trarão) a 4ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul pode nos oferecer. Mercosul?

É em Porto Alegre ou no Mercosul? E Mercosul é uma geografia, um nome próprio de lugar? Não seria Cone Sul? Mercosul, até onde se sabe, tem a ver com mercado, com trocas comerciais de mercadorias e serviços, etc. Então, o que artes visuais e cultura tem a ver com mercado, ou com o nosso desmilinguido Mercado Comum do Cone Sul, apelidado de Mercosul?

Muita coisa, muito mais do que se pensa ou adivinha.

Para além de ser uma criação cultural, a arte é uma dimensão do pensamento do homem sobre si e sobre a natureza. Arte é, sobretudo, reflexão e expressão. Provoca, como diz Hegel, o “nosso juízo”, aguça o nosso sentido crítico, faz enxergar as contradições e até mesmo a essência das coisas, por trás das aparências. A arte é uma pedra de amolar a nossa intuição e a nossa percepção. Através da arte o nosso espírito faz malhação.

Ficamos mais ativos (e menos passivos), mais agudos, mais negativistas (como antítese de positivista), mais afiados em face ao homem, à natureza, aos recortes da vida e à curva do tempo.

Mas será que podemos generalizar? Isso não é histórico, vale em qualquer tempo e lugar? Existe genuinidade e autenticidade nisso tudo? Tudo que se autonomeia “arte” é efetivamente arte? Jean Baudrillard diz que vivemos em um tempo de simulacro e semantização.

Vivemos um tempo de falsificação e disfarce; um tempo de mudança no significado das palavras, dos enunciados e discursos. O excesso de realidade dissolveu o real. O real é um espaço inútil, cassado de realidade. A realidade não é o real, é uma representação do real, cujo objetivo é a produção de verdades (a ideologia). As coisas engoliram seus espelhos. É a morte da ilusão, da imaginação e da criatividade.

Vivemos sob o império da lei do valor – seu ídolo e novo Moloch, a mercadoria. O dinheiro é a mercadoria divinizada do mundo globalitário. O sujeito central é o dinheiro - “a vida do que está morto se movendo em si mesma”, no dizer de Hegel.

Há mais de 50 anos, os estudos de Adorno-Horkheimer sobre o que eles denominaram indústria cultural já apontavam esse fenômeno da instrumentalização da obra de arte pela estrutura mercantil. O mercado – esse ente fantasmagórico, que desde o início do capitalismo tudo transforma, informa, desforma e conforma – adotou a obra de arte como mais um instrumento de realização da mercadoria. A arte esbatida em cálculo frio. A autonomia, condição da obra de arte genuína, perde-se nos desvãos heterônomos da imitação e do fingimento.

Arte inautêntica, teu nome agora é kitsch, cuja função não é mais abrir portas fechadas, mas vagar errante por portas abertas. Sua espontaneidade e frescor estão corrompidos pela nova função social de valor de troca. Consome-se arte como se consome iogurte: com prazo de validade. É entretenimento e distração garantidos – ou o seu dinheiro de volta! Não é assim que os vendedores ambulantes operam o pregão?

A revolução burguesa promoveu o desencantamento do mundo substituindo o mito pela razão e a magia pela ciência. E a arte, até então aprisionada na jaula de ferro das finalidades mitológicas e religiosas, conquista a sua emancipação. Infelizmente uma conquista que não foi definitiva e nem duradoura. Vê-se novamente submetida, agora a uma segunda servidão. O state of the art da arte contemporânea é a reificação rebaixada da mercadoria.

Ao perder sua “aura” (W. Benjamin), se coisifica em objetos seriados, de moda e consumo. É de bom tom associar uma marca comercial, industrial ou financeira à arte e à cultura em geral. É o velho mecenato com roupa nova. Agora, numa situação invertida: outrora, o mecenas promovia a arte, patrocinando o artista; hoje, o mecenas instrumentaliza a “arte” para promover-se a si próprio e a seus produtos mercantis. A obra de arte é uma coisa lateral ao negócio em si. Assim, o mecenato reduz-se a um composto de marketing.

Não raras vezes, recebe incentivos do Estado, através de renúncia ou diferimento fiscal. O Estado arbitra em socializar o custo do financiamento da cultura-arte-mercadoria entre todos os contribuintes, em nome de uma transcendência que não logra mais se realizar. A viagem da realização do capital tem mais paradas hoje do que nunca. Em cada uma dessas paradas, o capital transfigura tudo ao seu redor.

Em novembro de 1967, Guy Debord já alertava que “a cultura tornada integralmente mercadoria deve se tornar mercadoria vedete da sociedade espetacular”; constatou, igualmente, que “a cultura deve desempenhar na segunda metade do século 20 o papel motor no desenvolvimento da economia, equivalente ao do automóvel na primeira metade e ao das ferrovias na segunda metade do século 19”. Para Debord, o “espetáculo” é o momento em que a mercadoria ocupou totalmente a vida social. Não apenas a relação com a mercadoria é visível, mas não se consegue ver nada além dela: “o mundo que se vê é o seu mundo”.

Não se trata de defender a arte como função pedagógica, como quiseram Platão e Aristóteles, e muito menos de fazer proselitismo por uma perspectiva de arte engajada, como instrumento da revolução mundial, como quiseram os stalinistas, de resto, outro simulacro crivado de ideologia; mas da arte concebida como expressão alegórica e simbólica que parte do velho terreno do instituído para os novos horizontes do instituinte. E o agente dessa viagem ao mundo do novo, ao mundo do admirável, do terrível, do sublime e do espantoso é o artista, que no dizer de Kant é um “animal incomparável”.

O artista autêntico é o visionário do novo e o tradutor do hoje. Seu trabalho de criação é o de transfigurar a realidade para termos acesso a ela. Como lembra Marilena Chaui, o artista “desequilibra o instituído e o estabelecido, descentra formas e palavras, retirando-as do contexto costumeiro para fazer-nos conhecê-las numa outra dimensão, instituinte ou criadora”.

O artista é o inventor criativo de um outro mundo: o mundo das formas e dos volumes, das cores e das massas, dos sons e dos gestos, dos ritmos e das palavras. Esse outro mundo ilusório é o espelho traduzido em rude caligrafia do nosso mundo sensível. Um espelho por vezes quebrado, onde os infinitos fragmentos refletem os enigmas do nosso tempo.

A Bienal de Porto Alegre (esse deveria ser o seu orgulhoso nome) é resultado das veleidades de uma instituição chamada Fundação Bienal de Artes Visuais do Mercosul, cuja direção toda ela é formada por empresários de diversos ramos de negócios do Sul.

Não é por descuido que o presidente da Fundação seja um banqueiro; ainda que não seja um banqueiro “federal”, apenas um banqueiro “municipal”, como diria Drummond. De qualquer forma, é simbólico que um punhado de negociantes sejam os formuladores de uma exposição dessa natureza e calibre, e de que a denominem de um lugar utópico, um não-lugar, chamado Mercosul, e não Porto Alegre, o que seria mais justo e, sobretudo, mais poético.

Visitando a exposição e verificando a capacidade expressiva dos seus artistas fica-se com uma sensação de hiato entre a exposição em si e seus proponentes da Fundação. Não há convergência, os caminhos acontecem em direções opostas.

Quem sabe a próxima edição da Bienal já ocorra sem o atual nome kitsch, para não dizer “fake”; e que a Fundação Bienal deixe de ser um clube de milionários municipais para universalizar os seus conceitos culturais e artísticos e proceder a um aggiornamento dos seus estatutos.

Afinal, a Bienal ainda não aprendeu nada com a Bienal?


Artigo de Cristóvão Feil, sociólogo e editor do blog Diário Gauche. Este texto foi publicado originalmente no portal Carta Maior, em 24 de outubro de 2003. Pode-se medir o alegado caráter vanguardista da Bienal de Porto Alegre pelo fato de que um artigo - escrito há dez anos - ainda tenha validade e seja atual.

A foto acima foi extraída do vídeo "Invenções Caseiras" que se encontra no portal da Nona Bienal do Mercosul. "Nona" tem a ver com vovó?

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