terça-feira, 12 de junho de 2012

"Mentira. O Faustão me convidou para ir e a TV Globo me proibiu de ir."


Daniel na cova dos leões

Daniel  foi um profeta cristão retratado no Antigo Testamento. Tudo o que se atribui a esse personagem figura no “Livro de Daniel”. O profeta mergulhava em visões apocalípticas que se transformaram em contos e se eternizaram. Entre tais contos, “Daniel na cova dos leões”. Uma metáfora perfeita.
O Daniel bíblico foi homem de virtudes, pensador emérito que obscurecia a todos e que desagradou ao rei dos Sátrapas (povo de uma província da Pérsia, hoje Irã) louvando a Deus, o que era proibido. Só o rei poderia ser louvado, pelo que Daniel foi punido sendo atirado em uma cova de leões fechada com uma pedra.  O fim da história é que Deus impediu os leões de jantarem Daniel.
Louvar a Deus e desagradar a um rei mortal pode ser uma metáfora para o confronto entre o livre arbítrio concedido aos mortais pelo Criador e a tirania que pretende impor como cada um deve pensar, falar e agir.
Lembrei-me do conto bíblico por conta de um Daniel contemporâneo que não desafiou a tirania, mas que foi vítima da própria crença no livre arbítrio. Daniel  Echaniz participou da edição 2012 do Big Brother Brasil, da Globo. Acreditando-se protegido pelas regras do jogo que conhecia, manteve um relacionamento tórrido com uma das beldades da “Casa” e, por irresponsabilidade da emissora, acabou tendo sua vida destruída.
Em busca de audiência a qualquer preço, a Globo instiga os “brothers” à bebedeira, ao sexo e à desinteligência entre si; a brigalhadas de baixo nível para despertar os instintos mais baixos do público. Nesse processo, era imperdível a cena que o Daniel contemporâneo e a modelo Monique Amin protagonizariam após se embebedarem até cair.
Daniel foi se deitar e Monique, mais bêbada do que ele, o procurou. Deitou-se ao seu lado, engalfinharam-se sexualmente sob o edredon. Enquanto isso, a câmera indiscreta do Big Brother transmitia tudo para o resto do país. Daniel e Monique fizeram sexo. Os movimentos sob o tecido mostraram isso, mas, como ela parecesse inerte durante o ato, as redes sociais foram tomadas por “denúncias” de que ele a teria “estuprado”.
A tese, que investigação policial posterior desmontou, é a de que Daniel teria tido o sexo negado por Monique e, após ela adormecer sob efeito da bebedeira, teria se aproveitado da situação para copular consigo sem que soubesse, praticando “abuso de vulnerável”. Os depoimentos dela e dele à polícia e à Justiça, porém, encerraram o caso. Foi tudo consensual.
Ainda que tenha estimulado Daniel, a Globo, assustada com as pressões da Polícia, do Ministério Público e de outras autoridades jogou Daniel aos leões ao defenestrá-lo do programa. Saiu sob afirmação da emissora de que teve “conduta imprópria”, ou seja, a Globo acusou o rapaz negro pelo que ele e a loira filha de eminente família de Santa Catarina fizeram consensualmente sob as cobertas.
No domingo, o UOL publicou entrevista de Daniel em que ele demonstrou ter descoberto sozinho tudo o que se diz sobre a Globo na blogosfera, que se trata de um poder opressivo que não hesita em destruir vidas.
A ironia que esse episódio encerra, é descomunal.  O mesmo Daniel, na estréia da edição deste ano do BBB, foi confrontado pelo apresentador Pedro Bial com uma questão que aludiu às reclamações de movimentos sociais contrários à discriminação racial, isto é, sobre o fato de que ele era o único negro em meio a quase duas dezenas de “brothers”.
Bial perguntou a Daniel, capciosamente, se achava que deveriam existir “cotas” para negros no programa, ao que o perguntado respondeu que não, pois, sob a pele, todos temos sangue vermelho. Foi mel na chupeta para o racialismo contido na escolha dos participantes do Big Brother Brasil.
Daniel foi comportado. Fez o que a Globo esperava dele, ou seja, que não criticasse que em um país em que, segundo o IBGE, mais da metade da população é negra ou descendente de negros, uma emissora selecione só um homem negro. O aval de um negro era essencial para coonestar o racialismo do programa.
Na hora em que a chapa esquentou, porém, o negro foi tratado como a elite branca trata a todos os outros. Atiraram nele primeiro e perguntaram depois. Daniel não teve “comportamento impróprio” algum no âmbito das regras do jogo que disputava. Não foi a primeira vez que um casal fez sexo naquela tevê para o país todo ver.
A entrevista do modelo ao UOL é imperdível porque mostra ele dizendo tudo que é dito em espaços como este sobre a Globo. Estão lá todas as premissas, de que a Globo se porta como o rei que atirou o profeta aos leões, que todos temem a emissora como temiam o rei persa. Leia, abaixo, a entrevista e, em seguida, as conclusões do blogueiro.
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UOL – Como está sendo sua relação com as pessoas na rua? Você sofreu algum tipo de represália ou as pessoas estão te tratando bem?
Daniel Echaniz – As opiniões são sempre divididas. Por enquanto, boa parte das pessoas está do meu lado, indignada com a situação. Muitas pessoas falam para eu processar a TV Globo, dizem que tudo o que aconteceu foi culpa dela. Mas quando as pessoas não sabem do fato em si, tiram opiniões precipitadas. Depois que fui inocentado, com o andar da carruagem, as pessoas viram que não era bem assim. Se eu fui inocentado, não tem mais o que falar. Tudo caiu por terra. Não fui inocentado por um achismo. Fui inocentado por um juiz, que avaliou as provas. O cara viu que eu não fiz nada. Então a opinião das pessoas mudou um pouco de figura. Muitas pessoas que me julgaram na ocasião estão arrependidas. É o que eu sempre digo: ‘quando você aponta o dedo para alguém tem três apontados para você’. Agora as coisas estão se acalmando.
E a sua mãe? Ela ficou bem abalada na época. Como ela está atualmente?
Minha mãe e minha mulher [a modelo Mônica Silva] ficaram muito impressionadas e na época não podiam falar nada. Até por tudo o que aconteceu. Minha mãe e a Mônica estavam muito expostas. Venho de uma família muito humilde, independentemente de ser modelo e viajar o mundo inteiro. Não sou só um cara bonitinho. Fiz por onde para chegar onde cheguei na minha carreira. E todo mundo sabe que minha mãe vende jornal no sinal. Na época, ela teve que vender jornal comigo na capa, como estuprador.  E as pessoas compravam o jornal falando mal de mim. E ela tinha que dizer: ‘Ele não é safado, é o meu filho’. Então para ela foi muito sofrido. Julgar é muito fácil. Se falassem só de mim, tudo bem. Mas envolveu toda a minha família.
Sua família foi afetada por conta do episódio?
Minha irmã é professora e teve problema na escola. Meu irmão que trabalha com informática também teve problema no trabalho.
Você ficou com mais raiva da TV Globo por ter afetado a sua família também?
Não tenho raiva porque opinião todo mundo pode ter. Acho que as pessoas só podiam ter um pouco mais de respeito. A Deborah Secco, a Fernanda Paes Leme, a Carolina Dieckmann e a Preta Gil, por exemplo, tinham que ter noção da força da palavra delas. O movimento que elas começaram na internet, quando aconteceu o episódio, tomou força porque elas abraçaram a palavra estupro. É a mesma coisa que eu chegar e falar que você é uma mentirosa, que nada do que você escreve é verdade. Você dificilmente vai ter crédito no seu trabalho. Você vai ter que começar do zero e provar tudo o que você é e já conquistou no seu trabalho de novo. Elas não tiveram essa consideração com a pessoa Daniel. Não pensaram que tenho família, sentimentos. Elas não pensaram na força da mídia.
Você vai processar a TV Globo?
Vou processar a TV Globo e a Endemol por danos morais e materiais. Ainda não entrei com o processo. Pretendo processar toda e qualquer pessoa que denegriu a minha imagem. O que aconteceu comigo no “Big Brother Brasil” virou tese de mestrado em faculdade de direito. Na tese, foi mostrado que eu não tinha culpa. Até porque tem N elementos. O simples fato de a Monique deitar na cama comigo já quebra o ato do estupro, porque ela me procurou. Tem coisas pelas quais as pessoas me condenaram e não sabem. Em momento nenhum fiquei na posição de réu, tampouco na posição de vítima. Eu e a Monique demos os nossos depoimentos na posição de testemunhas. Não tinha uma vítima e um réu de fato.
Você acha que foi retirado do programa e julgado por preconceito, por ser negro?
O que eu acho é que houve um equívoco muito grande por parte do diretor do programa [Boninho]. Eles já tinham feito a besteira e não deu para voltar atrás. Se foi preconceito não sei.
Como você foi selecionado para entrar no programa?
Diferentemente do que muitos pensam, eu tinha negado participar do programa quatro vezes. A equipe do programa me procurou e insistiu para que eu participasse. Em momento algum mandei material. Eles me acharam no camarote da Skol Sensation e me convidaram para participar. Eu não procurei a direção do programa. Já tinha um contrato fechado para ir para a África do Sul. Mas parei para analisar e pensei que com o dinheiro poderia ajudar a minha família e abrir uma ONG para deficientes físicos.
Você se arrepende de ter entrado, então?
Não sei se me arrependo de ter entrado. O que me deixou chateado foi que eles me tiraram o direito de concorrer ao prêmio em dinheiro e à aventura de estar enclausurado. Queria ver como eu lidaria com o confinamento. Eles me tiraram esse direito. Depois de tudo o que aconteceu, fiquei muito triste. Perdi trabalhos que provavelmente eu não vou mais fazer. E isso tomou proporções internacionais. Saíram matérias no Japão, na África do Sul… Diferentemente do que a TV Globo acha, tenho uma potência a meu favor que é a internet. Ao mesmo tempo que ela te coloca como Deus, ela te coloca como diabo em dois segundos. Tenho tudo isso documentado. Eles acabaram com a minha carreira de 12 anos.
Você não quis aceitar o convite do Faustão para falar sobre o caso. Por quê?
Mentira. O Faustão me convidou para ir e a TV Globo me proibiu de ir. Em momento nenhum eu me neguei a ir ao programa dele. Pelo contrário. Queria ir. Mas a direção da TV Globo me proibiu. O horário em que é exibido o “Domingão” é do Faustão. Por isso ele convida e fala o que quer. A TV Globo tinha medo que eu fosse e falasse algo que a colocasse em alguma saia justa.
Você conversou com o Boninho e o Bial após o caso? O que eles te disseram?
Não houve uma conversa. Eles não me procuraram para se retratar nem para falar nada.
O que a Globo te ofereceu em troca após te eliminar do programa? E qual seria o valor dessa ajuda de custo que a Globo ficou de pagar e não cumpriu?
Estávamos em negociação para chegar a um denominador comum, que fosse legal e viável para os dois lados para que eu não tomasse a atitude de ir para frente com o processo. Afinal, um processo demora anos. E a lei no nosso país é muito lenta. E a TV Globo tem força e pode usar dessa força para o seu bem próprio. Acredito na Justiça e espero que ela seja feita. O quanto ela vai ser lenta nós não podemos saber. Tenho um filho para criar, estou sem trabalho e com o filme queimado.
Você espera algum tipo de retratação da Globo pelo ocorrido?
Claro. Mas isso nunca vai acontecer. Na história da TV Globo você já viu ela pedir desculpa para alguém? Por isso, enquanto eu puder lutar e fazer Justiça para que num país como o nosso não sejamos reféns de uma emissora, eu vou lutar. Todo mundo tem medo da TV Globo. Qual é o segredo de tanto poder? Já se perguntaram, já pararam para pensar nisso? Da mesma forma que ela fez isso comigo, pode fazer com outras pessoas. Até quando vamos dar poder a uma emissora para falar o que pode ser feito? O brasileiro tem o direito de pensar livremente.
Você está morando no Rio ou em São Paulo? Ainda está andando de carro blindado e mudando de endereço?
Estou morando em São Paulo e andando de ônibus e metrô, como sempre andei. Tenho uma vida normal. Mas várias vezes ainda me sinto privado de algumas coisas pela situação que a TV Globo me deixou. Vou ter um filho e ele vai sofrer com isso. Vai sofrer bullying no colégio. ‘Sabia que você tem um coleguinha que o pai é estuprador?’. A TV Globo foi tão cruel que não pensou na consequência do que fez comigo. Não tenho por que me calar e ter medo. Claro que eu tenho que saber o que falar porque tudo pode ser usado contra mim. Estou totalmente livre, leve e solto.
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A diferença entre o Daniel bíblico e o contemporâneo é que não haverá nenhum Deus para salvar a este dos “leões”. Ele foi e continuará devorado. Está processando a Globo. Passará décadas nesse processo. Enquanto isso, estará na lista negra global, ou seja, pode esquecer a carreira de modelo. No resto do mercado de trabalho, a versão da Globo prevalecerá.
Esse rapaz vai trabalhar em quê? Como sobreviverá? Se tiver economias, talvez fosse bom refazer a vida em outro país.
Não haverá Deus ou Justiça para Daniel. Nenhum juiz lhe devolverá o que a Globo lhe tirou simplesmente por ter feito o que ela esperava que fizesse. E, enquanto o negro é confinado ao canto mais sombrio da senzala, a branca ruma ao estrelato. Obviamente que começando por posar pelada para uma revista masculina.

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