quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

fizemos do carnaval um consumo frívolo e obcecado pela imagem fashion?


Carnaval, uma nota


Escrevinhador


Por Felipe Carrilho

Em seu pioneiro livro “Carnavais, Malandros e Heróis”, o antropólogo Roberto DaMatta definiu o Carnaval brasileiro como “um momento em que se pode totalizar todo um conjunto de gestos, atitudes e relações que são vividas e percebidas como instituindo e constituindo o nosso próprio coração”. A folia seria, em outras palavras, uma das nossas instituições identitárias, “que fazem do Brasil, o Brasil”.

Atualmente, a palavra “carnaval” surge tão revestida de brasilidade que a maioria das pessoas deixa escapar o fio do seu lastro histórico. É como se o festejo fosse um elemento inato da nossa nacionalidade.

Mas o Carnaval é um fenômeno de longa duração. No século 19, era sinônimo de Nice e, no século 18, estava associado a Roma e Veneza, cidades que fervilhavam durante essa estação festiva, repletas de visitantes. E mesmo muito antes disso, já era uma das principais manifestações populares da Europa.

Os estudiosos, no entanto, não chegaram a um consenso a respeito da interpretação desse festival. Uma ala afirma que o Carnaval europeu é, originariamente, um ritual essencialmente cristão, e que o apelo ao consumo de carne, bebidas, e a ênfase na sexualidade são explicados pela necessidade de se abster dessas atividades no período subsequente.

Outros enxergam o Carnaval sob a ótica das tradições pagãs. Essa festa seria, assim, um resquício de antigos rituais agrários de fertilidade. Decorreria disso, o realce dos elementos fálicos, como salsichas e narizes compridos, símbolos da fecundidade almejada.

Para o renomado teórico literário russo, Mikhail Bakhtin, o Carnaval é, ainda, uma encenação do “mundo de pernas para o ar”, um momento em que o normalmente proibido é permitido ou até mesmo obrigatório. Funcionando como uma “válvula de escape” – ao autorizar, além dos prazeres da carne, a crítica às autoridades – o festejo teria o poder de garantir um funcionamento razoavelmente ordeiro da sociedade no restante do ano.

Essas tradições europeias atravessaram o Atlântico e chegaram ao Novo Mundo no século 16, principalmente às regiões colonizadas por católicos do Mediterrâneo. Por aqui se transformaram, ganhando contornos de outras culturas, principalmente das africanas. No caso brasileiro, isso fica evidente na importância da dança e dos instrumentos de percussão.

O Carnaval, assim, foi interpretado como uma das mais importantes expressões culturais, ao lado do futebol, do que Gilberto Freyre chamou de democracia racial. O próprio samba, espécie de ritmo oficial da nossa folia, representa, basicamente, uma síntese das intersecções rítmicas e harmônicas entre gêneros europeus, como a polca, e os batuques africanos, principalmente das populações de origem banto.

Além disso, se, por um lado, as alegorias do nosso Carnaval são tributárias de procissões de outrora, como as de Florença e Nuremberg – que contavam com carros alegremente decorados – por outro, as fantasias de nossas alas não escondem o parentesco com as vestimentas rituais do candomblé, sendo a tradicional ala das baianas – obrigatória tanto no desfile oficial das escolas de samba do Rio, quanto no de São Paulo – um indício inequívoco dessa realidade.

É também verdade que a ideia de democracia racial vem sofrendo duras críticas dentro e fora da academia, como nos movimentos sociais de afirmação negra. A questão central é o fato de Freyre amenizar, em sua obra, as tensões e os conflitos decorrentes dessas interações culturais históricas. Assim, numa interpretação ingênua da história do Carnaval, poderíamos ignorar, por exemplo, que, antes de se tornar um símbolo da nossa identidade, o sambista era visto como um infrator e que, ao portar um pandeiro na rua, poderia ser preso.

No intuito de superar por completo essas mazelas, vivemos um novo tempo, de descoberta e valorização da cultura popular. E, às vésperas dessa celebração nacional, outra frase do livro de Roberto DaMatta costuma dar samba: “No Carnaval, ensaiamos viver com mais liberdade”.

Felipe Dias Carrilho é historiador e autor do livro Futebol, uma janela para o “Brasil – As relações entre o futebol e a sociedade brasileira”



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