quarta-feira, 19 de outubro de 2011

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Caio Toledo: 1964, por que golpe e não revolução

1964: GOLPE OU REVOLUÇÃO?

 
Viomundo

por Caio Navarro de Toledo

Diante da recorrente questão “Golpe de 1964” ou “Revolução de 1964”, deveríamos lembrar as palavras de um ativo protagonista do movimento de abril. Em celebrado depoimento (1981), Ernesto Geisel declarou:

“o que houve em 1964 não foi uma revolução. As revoluções se fazem por uma ideia, em favor de uma doutrina”.

Para o vitorioso de 1964, o movimento se fez “contra Goulart”, “contra a corrupção”, “contra a baderna e a anarquia que destruíam o país”.

Embora pertinentes, pois rejeitam a noção de “Revolução” para caracterizar o 1º. de abril de 1964, as palavras do militar, no entanto, podem ser objeto de uma outra leitura. A partir de uma outra perspectiva teórica, é possível res-significar todos os “contras” presentes no depoimento do general-ditador. Mais correto seria então afirmar que 1964 representou: (a) um golpe contra a incipiente democracia política brasileira nos pós-1946; (b) um movimento contra as reformas sociais e políticas e (c) uma ação repressiva contra a politização dos trabalhadores e o promissor debate de idéias que, de norte a sul, ocorria do país.

Em síntese, no pré-1964, as classes dominantes e seus aparelhos ideológicos e repressivos – diante das iniciativas e reivindicações dos trabalhadores no campo e na cidade e de setores das camadas médias – apenas vislumbravam “crise de autoridade”, “subversão da lei e da ordem”, “quebra da disciplina e hierarquia” dentro das Forças Armadas e a “comunização” do país que, no limite, implicariam o “fim propriedade privada” e a “revolução socialista”.

Embora, por vezes, expressas numa retórica “radical” – reformas na “lei ou na marra”, “forca aos gorilas!” etc. –, as demandas por reformas sociais e as divisas políticas da época visavam, fundamentalmente, o alargamento da democracia política e a realização de mudanças no capitalismo brasileiro. Para Goulart e alguns de sues colaboradores, um “capitalismo mais humano”.

Contrariamente a algumas formulações “revisionistas” – presentes no atual debate político e ideológico – que insinuam “tendências golpistas” por parte do governo Goulart, deve-se enfatizar que quem planejou, articulou e desencadeou o golpe contra a democracia política foi a alta hierarquia das Forças Armadas, incentivada e respaldada pelo empresariado (industrial, rural, financeiro e investidores estrangeiros) bem como por setores das classe médias brasileiras (as chamadas “vivandeiras de quartel”).

Sabe-se que desde 1961 – bem antes da chamada “agitação” ou “subversão” das esquerdas –, alguns desses setores começaram a se organizar para inviabilizar o governo Goulart; a mobilização pelas reformas sociais e políticas – apoiada pelo executivo – incentivou a conspiração e amadureceu a decisão dos golpistas de decretar o fim do regime democrático de 1946.

Destruindo as organizações políticas e reprimindo os movimentos sociais progressistas e de esquerda, o golpe foi saudado pelas associações representativas do conjunto das classes dominantes, pela alta cúpula da Igreja católica, pelos grandes meios de comunicação etc. como uma autêntica “Revolução pacífica e redentora”.

Por sua vez, a administração norte-americana de Lyndon Johnson (1963-1969) – que acabou não precisando concretizar o apoio material e logístico aos golpistas, como estava previsto (como se comprova documentalmente) –, congratulou-se imediatamente com os militares e civis brasileiros pela rapidez e eficácia da “ação revolucionária”. Para alívio do Pentágono, da CIA, da Embaixada norte-americana etc, uma grandiosa e “nova Cuba” ao sul do Equador tinha sido evitada!

Embora tivesse uma simpática acolhida junto aos trabalhadores, às classes médias baixas e aos meios sindicais, o governo João Goulart ruiu como um “castelo de areia”. Dois de seus principais pilares de apoio – como apregoavam os setores nacionalistas – mostraram ser autênticas “peças de ficção”. De um lado, o propalado “dispositivo militar” que seria comandado pelos chamados “generais do povo”; de outro, o chamado “quarto poder” que estaria representado pelo Comando Geral dos Trabalhadores (CGT). A rigor, ambos assistiram, sem qualquer reação significativa ou eficaz, a queda inglória de um governo a quem juravam fidelidade; inclusive, diziam os mais “radicais”, com a própria vida caso isso se impusesse.

Desorganizadas e fragmentadas, as entidades progressistas e de esquerda – muitas delas subordinadas ou tuteladas pelo governo Goulart – não ofereceram qualquer resistência à ação dos militares. Sabe-se que, às vésperas de abril, algumas lideranças de esquerda afirmavam que os golpistas, caso atrevessem quebrar a ordem constitucional, teriam as “cabeças cortadas”. Mostraram os duros fatos que se tratava de uma cortante metáfora. Com a ação dos “vitoriosos de abril”, a retórica, no entanto, tornou-se uma cruel realidade para muitos homens e mulheres durante os longos e sombrios 21 anos da ditadura militar.

O golpe de 1964 foi um infausto acontecimento, pois teve conseqüências perversas e nefastas no processo de desenvolvimento econômico, político e cultural do Brasil que ainda se refletem nos tempos presentes. Decorridos mais de 47 anos do golpe, a quase totalidade da sociedade brasileira repudia a data, mas os democratas e progressistas não podem se satisfazer com a derrota sofrida pelos golpistas no plano ideológico. Se os valores da democracia atualmente são diuturnamente exaltados no debate político e cultural, os democratas não podem se calar diante do fato de que o regime político vigente nos pós-1985 ainda não fez plena justiça às vítimas da ditadura militar e ainda todos aguardamos que a verdade sobre os fatos ocorridos entre 1964 e 1985 seja plenamente conhecida.

Sendo o “direito à justiça” e o “direito à verdade” condições e dimensões relevantes de um regime democrático, não se pode senão concluir que a democracia política no Brasil contemporâneo não é ainda uma realidade sólida e consistente.

Caio Navarro de Toledo é professor aposentado do Departamento de Ciência Política, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da Unicamp.

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