terça-feira, 23 de agosto de 2011

o deus mercado e os bois e vacas

O lado avesso da Expointer: Entre o bem-estar dos animais e o mal-estar das/os trabalhadoras/es rurais.

 

Por Jacques Távora Alfonsin

Todos os anos, quando a Expointer se realiza em Esteio, os números da “excelência econômica” de produção da nossa terra, só não alcançam superar o das queixas contra o Estado, feitas pelas/os latifundiárias/os e as empresas dedicadas ao agro negócio. Não partissem de onde partem, dir-se-ia que as reivindicações que fazem ao Poder Público têm urgência igual à da própria sobrevivência.

Esteio se transforma, então, num santuário para onde acorre uma outra romaria da terra, bem diferente daquela que a CPT e outras organizações populares defensoras das/os pobres do campo organizam todos os anos. As orações ali se dirigem a um outro deus, conhecido por mercado. O ritmo da preparação e da realização da festa que o cultua, é dotado de um apoio logístico e de uma agilidade bem mais eficientes das que se observam na fila dos hospitais.

Os animais a serem expostos passam por uma rigorosa inspeção prévia e, dependendo da sua condição de saúde, aparência, limpeza, e outras exigências, são barrados na entrada. Os admitidos e acomodados recebem tratamento de primeira. Alimentação balanceada, água bem limpa para matar a sede, baias protegidas contra a intempérie. Antes das competições, repouso contra o stress da viagem que os trouxe ali, banho e escova. Quem os acompanha trata com esmero os “acessórios”. Conforme o caso, pilcha, arreios em ordem unida, estribos brilhando, tudo tinindo. Não vá algum descuido comprometer a premiação disputada. Bancas são montadas com zelo detalhista para os expositores e comerciantes. Chegam pressurosas as propostas de empréstimos bancários para agilizar os negócios. Novas tecnologias de uso da terra, máquinas e equipamentos capazes de dispensar mão de obra são exibidas, sementes transgênicas apregoam suas virtudes econômicas e despistam seus vícios danosos ao meio-ambiente. Pesticidas e agrotóxicos prometem lucros tão grandes que a terra que eles matam passa como conversa fiada de ecologistas ressentidos. Há um frenesi de leilões, compras e vendas, ofertas e preços se modificam em instantes, regateios e despistes quase tudo é feito no sufoco de se ganhar mais dinheiro, com pressa igual a de provocar enfarto.

Música, danças, competições esportivas, gastronomia, chimarrão e cachaça de guampa, haja quando menos alguma coisa que distraia as/os visitantes das finalidades “sérias e financeiras” do evento.

Longe dali, vizinha do mesmo lugar de onde os animais partiram, as vezes a beira de estradas ou pequenas propriedades rurais cedidas por caridade, amontoada sob lonas pretas em barracos gelados no inverno, queimando no verão, vive multidão de gente excluída desse festim anual. Diferentemente do tratamento garantido aos animais exibidos na Expointer 2011, essa gente passa fome, mal e mal atendida, eventualmente, com o bolsa família, bebe água suja, cobre-se no limite da vergonha, não tem “estância” nem “domicílio”, migra de um lugar para outro, é perseguida como criminosa por latifundiárias/os, advogadas/os, promotoras/es e juizas/es.

Defende-se como pode. Para as suas doenças, monta até precárias farmácias caseiras; para a educação das/os filhas/os, organiza “escolas itinerantes”. Mesmo isso tem-lhe sido negado e – é bom que se diga – muitas vezes por iniciativa do próprio Poder Judiciário.

As pessoas desse povo pobre ficam sabendo do tratamento carinhoso dado aos animais da Expointer, da atenção respeitosa com que suas/seus proprietárias/os são tratados, suas reivindicações estudadas e historicamente atendidas, do “crescimento econômico” que amplia e concentra suas riquezas, com ralo ou nenhum reflexo social.

Como o “respeito à lei” e o “direito adquirido de propriedade” são-lhes indicados como explicação justificativa da sua pobreza e miséria, procuram ler a Constituição Federal para conferir se toda a injustiça que padecem, não tem, mesmo, remédio legal e se tudo deve, então, ficar como está. Lá tomam conhecimento de que, bem ao contrário, a Lei Maior do país defende a erradicação da pobreza, a dignidade humana, a cidadania, o direito de ir e vir, de protestar, de se reunir, de se associar, exatamente tudo quanto se lhes proíbe.

De outro lado, deduzem todas as violações dos direitos humanos decorrentes do descumprimento da função social da propriedade que as/os grandes proprietárias/os de terra praticam e que ficam impunes. À velocidade de fórmula um que cumpre liminares possessórias contra trabalhadoras/es pobres, com violência capaz de matar, como já ocorreu aqui e em outros Estados, corresponde o passo de tartaruga das desapropriações de terra contra latifundiárias/os.

Deveres e obrigações decorrentes dessa função social, como o do crime de se explorar o trabalho escravo, das agressões ao meio-ambiente, da mantença dos índices de produtividade da terra em níveis incompatíveis com as necessidades alheias, do domínio exercido sobre certos prefeitos, governadores, bancadas parlamentares, manipulando leis e CPIS em proveito de seus privilégios, nada disso integra os debates que são feitos durante a Expointer.

Aí, então, esse povo todo constata, pelo menos na própria letra da lei esgrimida contra ele, que a democracia e o Estado não existem para proteger “a ordem e a segurança jurídica”, quando essas acentuam a inaceitável desigualdade que lhe nega o acesso a terra, discrimina-o, e o repele como peste. Como as/os pobres do campo não são como os animais rejeitados da Expointer, cresce em todas/os elas/es uma justificada indignação.

Por essas razões, entre o acesso prometido à terra e jamais cumprido, pela lei e pela reforma agrária, a indiferença dos satisfeitos, o preconceito ideológico presente em boa parte da mídia contrária aos direitos humanos fundamentais, e o medo presente em muitas pessoas de que a indigência campesina se transforme em revolta, é inadiável buscarem-se garantias efetivas para um modelo de desenvolvimento econômico e social capaz de mudar radicalmente o rumo dessa injusta, inaceitável exclusão social.

Assim, em boa hora a Câmara temática das economias do campo do CDES está pretendendo que, nos próximos diálogos com a sociedade civil, se questione quais desses modelos vão impulsionar a economia do campo nos próximos anos. Se é o atual, esse que trata melhor os animais do que as pessoas, faz da terra mercadoria e depreda a natureza ou se há espaço para uma economia mais preocupada com o ser humano do que o ter do mercado.

Aos números exibidos como prova da “excelência econômica” da nossa produção agropecuária e agroindustrial durante a Expointer, outros números – esses de gente como índias/os, quilombolas, pequenas/os proprietários rurais, associadas/os de pequenas cooperativas de leite, fumicultoras/es, sem-terra, desempregadas/os, pessoas atingidas pela construção de barragens e pelo avanço indiscriminado da silvicultura – querem ser levados à consideração desses diálogos da Câmara Temática das economias do campo. Lá oferecerão às/os demais conselheiras/os e ao governo do nosso Estado as suas propostas de modelo de desenvolvimento econômico e social realmente sustentável, quando menos aquele de uma economia solidária que não os trate em condição de inferioridade até aos animais exibidos na Expointer.

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