segunda-feira, 30 de maio de 2011

sugadores de sangue e a modernidade

Vampiros: uma saga de terror e prazer

 

Por Paulo Muzell

O mito do ser sugador de sangue – o vampiro – é milenar. Está lá na mitologia grega, povoou o imaginário e o folclore dos povos africanos e europeus, sendo, porém, particularmente cultivado pelos eslavos, que de pai para filho, repetiam estórias sobre esse ser das trevas, maligno e sedutor. Ele é um arquétipo humano, uma representação de nós mesmos: vivemos numa sociedade onde alguns poucos vivem à custa do trabalho de muitos outros, isso faz parte da própria essência de nossa sociedade capitalista.

Na literatura, todavia, o mito vampiro existe há apenas dois séculos. A primeira obra foi publicada em 1819, escrita por John Polidori, um médico, discípulo do famoso Lord Biron. O romance de Polidori teve alguma repercussão imediata, mas aos poucos foi esquecido. Somente décadas depois, já no final do século XIX é que o mito vampiro e os livros de terror nele inspirado começam a assustar, excitar e divertir o grande público.

Tudo começa em 1897, ano do lançamento do clássico “Drácula”, de Bram Stoker. O personagem-título surgiu inspirado no conde Vlad Tepes, o empalador, figura histórica do remoto século XV na Transilvânia, atual Romênia. A estória inicia com a mudança do conde Vlad-Drácula para a Inglaterra. Os aparecimentos do conde – acompanhados da visão de um enorme morcego –, são sucedidos por rastros de horror e morte.
Drácula ressurge do túmulo em busca do renascimento à custa do sangue humano. Ressurreição e sacrifício com sangue, são temas recorrentes, presentes na origem das religiões.

Em “Totem e Tabu”, Freud observa que o pai é chacinado pelos filhos, numa necessária resposta ao poder tirânico que exercia sobre os homens e mulheres do clã. Este poder será socializado pelos filhos após o banquete canibalesco. Mas o sentimento de culpa fará ressurgir o pai na figura do totem. O pai morto torna-se, assim, ainda mais poderoso do que em vida. O mito do vampiro parte daí, agregando um novo elemento, a pitada que populariza e traz sucesso à fórmula: o apelo erótico. Eros e Tânatos, dois impulsos vitais opostos, na verdade se encontram muito próximos, às vezes fundidos: são dois aspectos de uma única realidade.

Um ser sinistro e pálido – não suporta o sol e a luz –, emerge das trevas dotado de enorme energia e com o poder de subjugar. Forte e másculo, oculto sob o manto da noite, assim que o sol se esconde ressurge em busca da imortalidade. O vampiro – detalhe fundamental – é um homem alto e belo. No cinema os intérpretes pioneiros foram “escolhidos a dedo”: Bela Lugosi, no início dos anos trinta e mais tarde, no final anos cinqüenta, Cristopher Lee.

Seu alvo são as mulheres da sociedade inglesa da segunda metade do século XIX, oprimidas pelos rígidos padrões da moral sexual vitoriana. Casadas, viúvas, noivas e virgens solteiras, nada escapa a implacável sanha do conde. Usando o poder de transformar-se num enorme morcego, adentra castelos e lares, penetra silencioso na intimidade da alcova de sua “vítima”. Temos então o momento crucial, um “frisson” magnetiza as platéias: o morcego volta à forma humana e crava suas poderosas e percucientes presas nos lindos e delicados pescoços das donzelas, submetendo-as ao seu maligno poder, transformando-as em discípulas, “noivas do Drácula”. Ele cria, assim, um verdadeiro harém macabro, versão renovada do mantido pelo pai na horda primitiva. As “princesas do Drácula” cuja intimidade foi violada, como vítimas, permanecem puras, isentas de qualquer sentimento de culpa. A fórmula é engenhosa, adequada aos padrões extremamente conservadores da sociedade da época. Um homem macabro, mas atraente, másculo e sedutor. Ele tem a capacidade de penetrar na intimidade das alcovas e de submeter mulheres indefesas. Elas são “sugadas”, entregando-se incondicionalmente a ele.

Surge assim um personagem que se imortalizou, o conde Drácula. Ele marca o início de uma verdadeira “dinastia vampiresca”; a ele se seguiram muitos outros; alguns até fizeram igual sucesso, todos, porém de menor nomeada. Com pequenas e inevitáveis adaptações, o mito se trtansformou num fenômeno de massa há mais de um século. Continua sendo um rico filão, explorado pela literatura, cinema, teatro e televisão há cinco gerações.

O livro de Stoker foi muito bem recebido pela crítica, sendo considerado por alguns superior a famosa e consagrada obra de Mary Shelley, “Frankenstein”. Sir Arthur Conan enviou-lhe efusivos cumprimentos em nome de Sherlock Holmes e do dr. Watson. Mas a obra só rompeu os círculos mais restritos, atingindo públicos mais amplos com a ajuda do cinema e do teatro, duas décadas depois. “Nosferatu” foi primeiro filme que adaptou o livro de Stoker, em 1922. Como o estúdio alemão não adquiriu os direitos dos herdeiros do autor, os nomes dos personagens foram trocados. Alguns anos depois, em 1927, Hamilton Deane adapta o romance ao teatro, produzindo uma peça que alcançou longo e expressivo sucesso na Broadway.

Em 1931 começa a ascensão do estúdio Universal, que passa a explorar com grande sucesso o inesgotável filão dos filmes de terror. Neste mesmo ano é lançado um dos primeiros filmes sonoros da produtora: Drácula, personificado de maneira magistral pelo ator húngaro Bela Lugosi. Foram “anos de ouro” da Universal e, também, de Bela Lugosi. De obscuro ator em pequenos teatros transforma-se em poucos anos em artista de projeção internacional. Assim como o conde sobrepujara em popularidade seu criador, Bram Stoker, passa a ser uma obsessão de Lugosi. A força do personagem penetra as entranhas do ator a ponto dele pedir aos seus herdeiros que fosse sepultado vestido a rigor com o figurino de Drácula. No seu enterro, ocorrido em 1957, segundo a lenda, dois famosos atores colegas seus teriam travado um curioso diálogo. Peter Lorre, muito impressionado com a visão do morto, teria cochichado a Vincent Price: “será que não deveríamos, por precaução, cravar-lhe uma estaca no coração?”

A fase de Drácula e dos filmes de horror da Universal se esgota em meados dos anos quarenta e sendo retomado como grande vigor e competência pela produtora inglesa Hammer no final dos anos cinquenta, estendendo-se até o início dos anos setenta. Em 1958 é produzido o clássico “O vampiro da noite”, primeiro filme colorido da Hammer e que inicia um ciclo de sete filmes vampirescos muito bem recebidos pelo público. Uma nova dupla de atores ingleses surge, e rapidamente torna-se lendária na filmografia dos filmes de terror: Cristopher Lee – como o conde Drácula – e Peter Cushing como seu implacável caçador, Van Helsing. A Hammer encerra a série em 1974 com o filme “The legend of the seven gold vampires”.

A série Drácula será retomada em 1992 numa superprodução de Francis Ford Coppola, com Gary Oldman no papel de Drácula e um forte elenco que contou com Anthony Hopkins, Winona Ryder e Keanu Reeves. Produção bem cuidada, com excelente música e figurino, grandes interpretações é no geral fiel à obra de Stoker, introduzindo como novidade a ênfase do relacionamento amoroso entre a personagem feminina Mina e o Drácula. O filme foi grande sucesso de bilheteria, faturando mais de 200 milhões de dólares.

É a partir de meados dos anos setenta que o gênero horror-vampiros dá uma significativa guinada. A responsável foi a escritora norte-americana Anne Rice, ao publicar em 1976 seu romance “Entrevista com o vampiro”, obra inicial da sua série “crônicas vampirescas”. Nove anos depois, em 1985, Anne Rice consolida seu prestígio como escritora lançando sua segunda obra: “O vampiro Lestat”. Alguns anos depois, em 1994, “Entrevista com o vampiro” seria adaptado para as telas por Neil Jordan, com excelentes resultados.

Anne Rice apresenta seus personagens-vampiros como indivíduos quase humanos, dotados de paixões, sentimentos, defeitos e qualidades. Eles vivem o drama do cotidiano da existência, buscam um sentido para suas vidas. A sua existência secular vidas pesa-lhes como um fardo, faz com que encarem a morte como possibilidade, válvula de escape, uma necessária saída. Três são seus personagens-vampiros mais conhecidos: Lestat, Armand e Louis. É esse último, Louis, quem introduz a grande novidade: relutante em tirar a vida de seres humanos, alimenta-se com sangue animal. Está dado o primeiro passo rumo à humanização do herói-monstro. Assim como o ritual do sacrifício oferecido ao totem nas sociedades primitivas vai se modificando, com a troca da oferenda, – a virgem é substituída pelo animal sagrado -, o vampiro passa a evitar o sacrifício de sugar o sangue de seus “semelhantes”. Outra novidade é o início do confronto vampiros versus lobos-lobisomens, esses últimos também seres da noite dotados de grande poder de transformação e de destruição. Como veremos esta linha será explorada e aprofundada mais adiante na recente saga “Crespúsculo”, de Stephenie Meyer.

Há seis anos atrás, em 2005, Stephenie Meyer, uma desconhecida escritora norte-americana de apenas vinte e oito anos lançou seu romance Crepúsculo. O rápido e extraordinário sucesso da obra apressaram os lançamentos seguintes, sendo editados em seguida “Lua Nova” e “Eclipse”, estando previsto para 2011 o lançamento do quarto livro: “Amanhecer”, que completará a saga. Os três primeiros romances já originaram filmes que atraíram, também, milhões e milhões de expectadores. A autora vendeu mais de cem milhões de exemplares e suas obras permaneceram por 235 semanas – quase cinco anos – na listas dos livros mais vendidos nos Estados Unidos e na Europa

Stephenie Meyer aprofunda mais ainda as mudanças introduzidas por Anne Rice: o herói-galã do primeiro romance, Edward Cullen, evita alimentar-se de sangue – mesmo de animais -, passa a ser um vegetariano! Os vampiros já não são mais seres exclusivamente noturnos, vivem em plena luz do dia! O terror é substituído pela aventura, os vampiros disputam a hegemonia do território com os lobos e são dotados de excepcional força e poderes: até voam! É óbvio que essas mudanças transformaram esses vampiros do século XXI em heróis ao gosto das platéias infanto-juvenis. O mito vampiro é totalmente descaracterizado sofreu um processo de juvenilização.

O fato provocou forte reação do principal especialista em vampiros e filmes de terror brasileiro, José Mojica Marins, o Zé do Caixão. Ele, que há mais de sessenta anos produz filmes do gênero afirma que o verdadeiro filme de horror não aceita ou comporta tais modernidades, que uma obra só terá consistência se permanecer fiel às suas raízes, as lendas do folclore que a inspirou. Numa entrevista concedida em recente aparição pública, resumiu seu desagrado e desprezo pelos filmes da saga Crepúsculo numa sintética frase: “são umas fitinhas de boiolas!”

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