sábado, 22 de maio de 2010

O Descolocado

II

O Velho faltoso de uma das pernas, olha no seu redor, nem fica pasmo comigo, pareço não existir. Tem os olhos das lembranças vividas por aqui, em outros tempos. Não reconhece mais nada, as coisas estão mudadas de lugar. A sua memória não é tão boa, mas tem certeza que as cinzas da vila de papelão foram transformadas em muros brancos e higiênicos para guardar os mortos. O faltoso da perna acha que praticam naquela tonalidade esbranquiçada o acobertamento do passado. O desenfeitamento das mortes desaparecidas é o conforto necessário para que nada mude de verdade. As crianças que entram e saem não sabem das vidas arrastadas e levadas contra suas vontades, jamais saíram da ilha afundada. Ficaram escondidas em algum lugar ali por baixo. O povoamento da ilha de Madalena nas cercanias da cicatriz, era terra de abundância, cresceu e virou balneário de veraneio dos bem de vida. Depois do afundamento vieram as tropas, mas permanecem, como lembrança de alguns poucos, as paredes caiadas de branco que continuam a esconder suas histórias.

A míngua e a fartura seguem a se acomodar no contorno da abundância engolida. Vivem de costas uma para outra. Os ricos de um lado e os miseráveis de outro. As histórias de uns são escritas com letras de ouro e a vida de outros é gravada nas areias da praia deserta, alguns recebem por privilégios títulos honoríficos enquanto a maioria quer reconhecido seus direitos à vida

Senta aí... preciso te contar uma história.

As palavras são ditas como se não houvesse começo ou fim, tudo no seu tempo vai se repetir. Toma assento na grama esverdeada da praça dos pedalinhos, ao lado de uma imensa cruz de madeira, pequena área do cemitério das memórias, estou seguro em suas mãos de unhas crescidas e enegrecidas de terra. Depois de examinado com desdém, sou colocado sobre seu colo. Permaneço atento e prudente a todos os movimentos. Os três seguimos desafinados com aquelas cruzes fincadas no chão, tudo cercadinho por fios farpados de eletricidade. Olho à guria, o velho e àquele lugar, todos os olhos acusam. Somos intrusos indesejados. O Velho quase desiste, mas, por fim, enfia a mão dentro do casaco de frangalhos e reaparece com uma trouxa de pano. Tem a forma de um tubo volumoso. Solta o cordão que segura tudo enrolado. Desenrola. Aparecem papéis descorados sobre o pano amarelado estendido no chão

O que é isso?

Pequenos pedaços da tua vida desconhecida.

A minha... o quê?

Pronto, conseguiu a vigilância da guria e a minha, a verdade, ainda que amarga, se traga

Chegou o tempo da alma se conhecer.

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